quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Água de Beber


Acabei de provar a pior iguaria da vida, fornecida gratuitamente por um chinês que se autodenominou King. Trata-se de um pacotinho de plástico lacrado no qual o conteúdo é uma língua de pato, cujo cheiro lembra um doce e o gosto lembra um bidê. Delícia, não deu nem pra engolir.

Hoje foi o encerramento das aulas de Direitos Humanos no St. Thomas, porque já peguei o projeto quase no final por lá. Agora começo numa escola nova a partir de sexta-feira que vem. E foi neste último dia de avaliações, testes e conclusões que temi pela absorção das lições dadas e da prática dos Direitos Humanos pela rapaziada do colégio.

Enquanto esperava na sala dos professores, fui surpreendido pelo chamado de um professor (Jacobo) a um aluno que estava do lado de fora, olhando pra dentro da sala. Quando o diálogo entre os dois acabou, Jacob pegou uma tábua de madeira e sentou a madeirada na bunda do rapaz, duas vezes. Quando acabou, o menino agradeceu e pediu pra se retirar.

Sala dos Professores
Apesar de estar ali pelos Direitos Humanos, confesso que fiquei na dúvida entre intervir (e talvez extrapolar as barreiras dos meus objetivos ali frente aos comandos do professor) ou ficar quieto assistindo aquela cena inimaginável. Optei pelo silêncio, embora tenha me arrependido depois. De repente a atitude de “salvar” o menino de uma surra de madeira teria dado a ele mais aprendizados do que algumas aulas de Direitos Humanos.

Perplexo, fiquei pensando como ainda existia esse tipo de tratamento dentro de um ambiente escolar em 2013, no qual os alunos são punidos por terem feito rigorosamente nada. Não bastasse a bronca da professora (que já relatei), os alunos ainda eram submetidos a um regime supramilitar de obediência, enquanto Jacobo saciava seu sadismo.

Another Brick in the Wall
Achando que não veria aquela cena de novo, ainda pude conferir de canto de olho um dos melhores alunos tomando paulada por ter me ajudado a traduzir pro suaíle as instruções dadas por mim, tendo que ficar em pé na sala durante os meus dizeres. Infelizmente, quando vi já era tarde demais e os olhos do Khassim (aluno) já estavam vermelhos de vergonha (ou seria raiva?).

De todo o dia de hoje, o que me deixou muito feliz foi a gratidão dos alunos pelas aulas dadas e o sonho de vários deles de se tornarem médicos, advogados e profissionais de outras grandes áreas do conhecimento. Se falta papel pra anotar a lição (muitos não tem caderno e anotam em folhas velhas de jornal), sobra disposição pra correr atrás do objetivo, pelo menos pra aqueles alunos mais dedicados e interessados.

Pra variar um pouco, higiene/água:

A água aqui é sempre engarrafada. Não existe água potável saindo da torneirinha limpinha. Então em muitos lugares vende-se água em galão de três ou cinco litros, garrafinhas menores e de todo o jeito. Acontece que na rua os ambulantes vendem aquela água batizada, com a garrafa vazia levada até qualquer bica muito suja pra encher.

Pra escovar os dentes e lavar a roupa e a louça, é mais tranquilo usar a água que sai da torneira, mas ainda assim não é recomendável. O resto todo é proveniente de água engarrafada. Se um litro de água custa 0,30 centavos de dólar, o refrigerante sai na média de 0,50 centavos a garrafa de 500ml, o que se torna uma opção mais “segura” nas ruas. E sempre quente, já que não dá pra confiar na geladeira pelas recorrentes quedas de luz.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O Senhor do Maufim

Fui abordado por uma menina do St. Thomas por estar usando uma fitinha verde no tornozelo esquerdo. Ela nunca tinha visto nada parecido, mas a aproximação tinha um motivo: a menina estava preocupada com a possibilidade de ser bruxaria. Daí tive que explicar pra ela que eu era de Hogwarts e conhecia o Harry Potter, mas de nada adiantou. Ela nunca ouviu falar no menino-que-sobreviveu.

Tive que explicar que era um “amuleto de sorte” e descrever todas as finalidades da fitinha do Senhor do Bonfim pra tentar convencer que eu não estava praticando witchcraft. Como na vida “tudo é maneira de falar”, abordei apenas a parte dos desejos se realizarem, mas sem entrar no mérito religioso desse ornamento baiano.

Acontece que por essas bandas de cá, bruxaria ainda é uma preocupação não só cultural como criminal. A prática de bruxaria é considerada crime e levou principalmente mulheres à morte, com relatos de incidentes comprovados na década de 90, embora se saiba que essas medidas ainda estejam em vigor em diversos locais da Tanzânia e da África.

Outro ponto assustador e praticado é a mutilação genital feminina. Essa conduta, punível com até quinze anos de cadeia por uma lei local desde 1998, é feita principalmente em meninas menores de dezoito anos. Apesar da vigência da lei e do conhecimento público sobre a existência dessas ações, não há relato de sequer um processo envolvendo participantes deste ato abominável.

O curioso em relação à bruxaria é que muitos locais procuram médicos curandeiros ao invés de optarem pela medicina tradicional. Isso se dá não apenas pela crença da população em métodos de cura antigos, mas pelo alto preço do tratamento médico convencional. Um chinês da casa (“Frank”) pegou malária e não tinha seguro saúde. Gastou oitocentos dólares numa internação de dois dias no hospital. Salgado.

Sobre a saúde:


As pessoas não parecem se preocupar com malária ou com qualquer outro problema. Não é a toa que a expectativa de vida de cá é de 53 anos. Também pudera, comer batata, arroz e macarrão a vida inteira não deve dar todos os nutrientes necessários pro bom funcionamento do organismo (só pra correr uma maratona ou outra, aí dá sim).


Não há farmácias em qualquer lugar e até pra comprar shampoo é preciso programar um pulo na loja com antecedência. Não existe delivery (logicamente) e muito menos “genérico”. O serviço de saúde apesar de não ser tão ruim, é extremamente caro e inacessível pra maior parte do povo. Então é fé em Deus e pé na tábua pra não pegar nada.

Meu Nome Não É Johnny

Alguém estava seriamente me testando hoje. Demorei duas horas e meia pra chegar ao colégio e quatro horas pra voltar. A refeição foi Corn Flakes às oito da manhã e macarrão de novo só às nove da noite. Claro que ficou horrível já que estou sem luz. E pra fechar o dia, ainda teríamos uma adaptação ao ditado: apressado queima o dedo.

Descobri ontem à noite que as chinesas da casa, Jane, Sheryl, Sissy, outra Sissy e muitas outras que não sei o nome, na verdade inventam nomes “americanos” pra que todos possam chamá-las e gravar suas novas identidades. Imagina que loucura seria chegar na China e inventar um nome novo pra você. Quando perguntei pra Jane da onde ela tinha tirado seu nome, ela disse que escolheu porque achava bonitinho. Justo, justo. Mas a Sheryl tá caprichando no mau gosto.

Outra esquisitice que ocorreu foi a seguinte: uma senhora vestindo burca do meu lado no Dela-Dela, daquelas que cobrem tudo e só deixam os olhos de fora (muito comum por aqui, já que o país é muçulmano) estava com um bebê de colo no transporte. Assim que o bebê começou a chorar, a cidadã prontamente puxou seu seio esquerdo pra fora da burca no ímpeto de amamentar o rebento. Quer dizer que olhar a cara não pode, mas botar o mamilo pra jogo tá tudo certo? Aceito conclusões.

A paixão tanzaniana é o fute-bola, mas infelizmente a preferência nacional é a Liga Inglesa, decorrência da breve passagem colonizadora dos amigos da rainha Elizabeth. Ainda é com extremo pesar que digo aos camaradas brazucas que eles só conhecem dois times do Brasil: Flamengo e Corinthians. Tenho certeza é questão de tempo até que venham a conhecer todos os outros, com os olhares na Copa do Mundo.

Pelos últimos dias, ainda encontrei com dois educadores com estilos muito diferentes durante o trajeto pelo Dela-Dela. Um deles espalhando panfletos sobre a importância da educação aos jovens, na tentativa de alertar pais e tios sobre o incentivo necessário. O outro apenas puxou o assunto ao meu lado e me lembrou de comentar algo gritante e fundamental daqui.

Ontem falei um pouco de educação, mas muito pouco pro tamanho do assunto:

A Tanzânia atravessa uma crise educacional neste momento. Os alunos prestaram o exame nacional de avaliação e 60% tirou zero. Ou seja, mais da metade do país não sabe nada sobre a matéria de qualquer assunto. Não foi protesto estudantil, como me garantiu o amigo do ônibus, mas simples ignorância e falta de estabelecimento de diretrizes por parte do Ministério da Educação (existente sim).

Ademais, foi constatado um rombo de 1,6 bilhões de Shillings (100 milhões de dólares) na verba destinada à educação. Isso representa 10% do PIB, pelo dado obtido através deste sujeito, que acabou declarando sua participação na oposição política ao regime atual. Dar aula de Direitos Humanos se provou  ainda mais importante missão.



terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O Homo e a Fobia

St. Thomas
Discutir o homossexualismo e buscar uma visão de respeito e igualdade a estes camaradas, tendo em vista os Direitos Humanos, está no meu programa. Tive a oportunidade de debater esse assunto com a turma do colégio St. Thomas mais cedo e fui surpreendido com algumas respostas, que ilustravam a ideologia e o pensamento da comunidade local.

Em primeiro lugar, é necessário saber que existem leis contra homossexuais na Tanzânia. Isso mesmo, nesse nível. Em Zanzibar, que é uma província semi-autônoma muito famosa por sinal, existem crimes como “lesbianismo”, que dá até cinco anos de prisão, enquanto viver junto ou ter algum caso, pode dar até sete anos de cadeia.

Chegada a Tanzânia
Calma que ainda não acabou. No Código Penal da República da Tanzânia, um relacionamento masculino homossexual pode levar a até quatorze anos de prisão, embora atos sexuais entre mulheres não tenham sido criminalizados ainda (malandros esses legisladores). Pra fechar o estudo, não há qualquer caso de prisão ou acusação por estes crimes desde sua criação (2004). Só não pode dançar homem com homem.

Ao dizer tais conceitos e pregar pelo respeito aos homossexuais, uma aluna levantou o braço e afirmou: “mas não existem homossexuais na Tanzânia”. Um outro foi um pouco mais enfático e disse que não era certo, pela bíblia, e também porque não encaixava, já que o casal homossexual não poderia procriar.

Claro que não é papel do professor impor qualquer tipo de pensamento, então entrei na discussão na tentativa de fazer com que os alunos refletissem e julgassem essa forma de pensamento, questionando uma série de coisas, dentre elas, a mistura do preto com o branco. Foi bastante complicado e 99% da turma apoiava o colega radical, até que surgiu um bracinho solitário da Angel, uma aluna sensacional.

Angel disse que não cabia a nós julgar a felicidade dos outros, muito menos criminalizar uma conduta que, por mais inexplicável que possa parecer, pode efetivamente gerar satisfação e alegria ao casal do mesmo sexo. Depois da aula ela me contou que queria ser advogada. Dever de casa cumprido.

Pra dar uma descontraída, eis a foto da Ókley e Nesquiksilver sendo vendidas a céu aberto. É assim que o comércio local negocia vestimentas e a galera experimenta tudo que é roupa e tamanho no meio da rua mesmo. Vale tudo, Gil? (link)

Ponto fundamental a ser dito, é o da educação:

Enquanto preparávamos a aula de Direitos Humanos, uma professora do colégio resolveu se meter dando réguadas nos alunos como forma de fazê-los entrar na sala de aula. Gritando destemperada, ainda deu tempo da digníssima olhar pra minha cara e dar um sorrisinho, como quem diz que estava fazendo a coisa certa.

Fica um pouco mais complicado ensinar Direitos Humanos quando os Direitos Humanos não são respeitados nem no ambiente escolar. Pra piorar, essa professorinha ainda ficou intervindo no gogó só pra pedir silêncio. Quase que eu clamei pelos meus Direitos Humanos de dar a aula em paz e não ter que ficar ouvindo berro em suaíle pela orelha.

P.S. Antes que qualquer polemizador venha dizer algo, lógico que respeito o homossexualismo como orientação sexual e opção de vida. Não acredito que seja papel do educador impor qualquer tipo de raciocínio, mas sim permitir aos alunos que estes tenham discernimento e conhecimento suficiente da causa para que criem uma ideologia própria, sendo ideal a contrária a qualquer tipo de discriminação por qualquer motivo que seja.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Uma luz no fim do tún... Ih, acabou.


O dia começou com Chapati e suco de abacate. Lembra daquele café da manhã que eu falei? Taí a foto. Café da manhã caprichado porque depois dele, sabe-se lá quando será a próxima refeição. Por acaso, hoje foi só o jantar no final do dia. Macarronada com um molho devorada no Japa Style do hashi conquistado.

Por falar em hashi nervoso, eu que fiquei meio cabreiro com a declaração de uma chinesinha aqui pra mim. Sem piadinhas de que o olho pequeno faz enxergar mal e tudo mais. Eu agradeci o interesse e gentilmente neguei, posto que não pretendia ter qualquer contato além da amizade com quem tivesse mais pelo no sovaco que eu.

Hoje ainda rolou a aula inaugural de Direitos Humanos no Tabata Muslim e foi sensacional. Eu já tinha dado aula lá, mas só acompanhando minha parceira alemã de projeto, sobre liderança. Apesar do inglês dos alunos não ser impecável, o interesse compensa e conseguimos uma sintonia fina. Foi uma pena a aula ter sido interrompida pelo chamado à mesquita. Hora de rezar, respeitada.

Ainda fiz um Rafiki (amigo) na barca até Kivukouni, pra pegar o segundo Dela-Dela pro trabalho (“Niterói” se chama Kigambouni e é o lado da cidade que moro). Pra fechar o transporte, pra que sutiã? A tia da van achou bem mais confortável apoiar o par de seios cansados no meu ombro. Tudo certo, tava lotadasso o veículo.

Outro ponto impressionante dessa terra fenomenal e que to pra falar há um tempão é sobre a falta de confiança do governo e dos serviços em geral na adimplência popular. Não existe assinatura de jornal aqui, todos são vendidos na rua e nunca vi ninguém comprar. Não tem nada demais? Não, não tem. Mas a luz é pré-paga.

Tanto o meu celular de cartão (pra quem quiser me ligar, 065 278 3950), quanto a conta de luz são pagos com antecedência. Então você compra créditos pra ter em casa, e se acabar, bom... acabou. Dependendo da hora que acabe o seu “saldo de luz”, não há nada a ser feito. Se acabar durante a manhã, é só comprar mais nos postos de venda. Se for de madrugada, enjoy the heat.

Na parte da luz, a declaração é essa:


Não tem muito isso de fornecimento de serviço aqui. É curioso atestar que no mundo que conhecemos dos serviços, aqui não exista confiança no povo pra manter um sistema de crédito ativo. Isso da luz ser pré-paga é de deixar qualquer um perplexo. Na verdade, me explicaram que a população vinha roubando muita luz, então uma solução prática foi deixar a luz pré-paga, porque aí se roubassem, quem pagou que resolvesse a situação.

Nada mais é do que uma delegação do poder do Estado à população pra resolver seus próprios problemas. Ao invés de conscientizar a população e convencê-la a arcar com os custos de luz, punindo os ladrões de luz, o governo preferiu botar a luz pré-paga e deixar o pau comer solto. Um passo pra trás no progresso tanzaniano.

Como se não fosse suficiente, descobri também que a luz acaba porque não há em quantidade suficiente pra parte residencial e industrial, então eles cortam pra garantir que as fábricas não precisem parar de funcionar. Dos noves dias em que estive aqui, posso garantir que a luz acabou em uns sete. Então quando tem luz, é correr pra carregar qualquer aparelho dependente de eletricidade, porque nunca se sabe quando vai acabar.


Papo Sério


Nesses últimos dias andei falando muito das complicações aqui na Tanzânia, dos pontos negativos, do que é mais flagrante aos olhos em primeiro momento e de pequenas dificuldades cotidianas que incomodam incomodam incomodam muito mais (musiquinha).

No entanto, foi no domingo ensolarado de ontem, depois de fazer uma senhora faxina no meu quarto e de me sentir completamente à vontade com a minha casa, o ambiente que estou vivendo, as pessoas daqui e o trabalho (principalmente), que passei a encontrar essa tal alegriazinha que vinha buscando nessa jornada inexplicável.

Não sei exatamente dizer como ou por que esse clique ocorreu, mas de uma hora pra outra assim, não importava tanto o conta-gotas do chuveiro, a comida (“falta de” ou repetição do cardápio), a dificuldade de locomoção, o Mzungu nosso de cada dia... A missão estava sendo cumprida.

E acima de qualquer “cumprida” estava o “aprendida”. A falta que a família faz (“ei, eu tenho uma família espetacular!”), os amigos (que são outra forma de família) ou até as coisas de menor importância (tipo o vaso) tinham finalmente achado seu espaço (permanente) no meu coração, me conferindo a possibilidade de aproveitar cada segundo mesmo num ambiente tão diferente como esse.

A casa é suja, mas eu tenho um teto. A comida é ruim, mas eu me alimento. A água é quente, mas tem água. Estou sozinho, mas tenho todo mundo. Algumas sabedorias são desprezadas por terem se tornado clichês e por isso mesmo, deixam de ser observadas, o que é um crime. Não tanto mais assim. Não fica triste não, você tem milhões de motivos pra sorrir! E eu também.

Fica complicado enumerar os aprendizados porque cada dia acontece algum aprendizado novo. Um novo herói cotidiano, uma conversa com um muçulmano no Dela-Dela, uma experiência muito pequena que acaba acrescentando absurdos e gerando filosofias e reflexões novas, inesquecíveis.

Pra finalizar essa parte em estilo fenomenal, trabalho:

Algumas pessoas vêm me perguntando sobre a importância de um trabalho de Direitos Humanos, sem conseguir entender o propósito das aulas e o valor do conteúdo pras crianças e jovens. Por isso, retiro do meu material de estudo e preparação de aulas os seguintes dizeres de Sérgio Vieira de Mello, 2003 UN High Commissioner for Human Rights (mania de Direito de citar os outros):

These are not just lessons for the classroom but lessons for life – of immediate relevance to our daily life and experience. In this sense, human rights education means not only teaching and learning about human rights, but also for human rights: its fundamental role is to empower individuals to defend their own rights and those of others. This empowerment constitutes an important investment for the future, aimed at achieving a just society in which all human rights of all persons are valued and respected.

Não se trata de passar um conteúdo de Direitos Humanos como matéria tipo matemática ou geografia. As aulas de Direitos Humanos pra pessoas em condições degradantes ou de completo abandono são capazes de gerar nesses indivíduos uma consciência tal que motive uma transformação não só de vida para aquele sujeito, mas uma transformação social a longo prazo. Pode parecer idealismo, mas se alguém pretende acrescentar alguma coisa no mundo, tem que começar por algum canto. 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Naique Shox Cultural

O choque cultural asiático foi grande. Foi-me dito que a maioria das chinesas daqui da casa nunca deu um beijinho de boca, muito menos viu alguma outra coisa que não a própria coisa. Além disso, uma delas foi casada com um camarada por dois anos por negociação dos pais, e ainda assim nunca deu um beijinho no digníssimo esposo.

Ganhei vários presentinhos de chinesas que foram embora por esses dias. Inclusive um par de hashis (já falei deles antes, na outra casa tinha um bocado) e agora posso até optar por não comer com a mão. Ainda ganhei medicina chinesa, cartões postais e um cabide. Tiraram uma foto minha no medidor de feiura e deu zero (zero é o fenômeno, dez é o cão chupando manga pingando limão no olho). Vou-me embora pra Chinárgada, lá sou amigo do rei.

Pelo regime de governo chinês, eles não têm Facebook (pode procurar por um chinês aí no Facebook, você vai até achar, mas não um que more na China), não podem acessar o Youtube e nem o Twitter. Por isso que muitos deles “surtam” aqui, com a liberdade de sair fazendo milhões de coisas diferentes sem ninguém pra oprimir ou recriminar (até certo ponto).

Alphonse brincando na cozinha.
Hoje acordei tarde e perdi o café da manhã (ainda vou botar uma foto aqui, o lugar é “sensacional” e tem suco de abacate ou de manga), mas ainda deu tempo de limpar o quarto todo. Tinha desde chinelo sem par até camisinha usada embaixo da minha cama, passando por comida podre e outras coisas. Agora é proibido entrar no quarto de chinelo, tá tinindo de limpo esse cômodo tão importante.

Depois de ir pra praia por três dias seguidos (sexta, sábado e hoy), provei uma comida típica que vai muito de encontro com cultura brasileira. Já tinha escutado algumas vezes sobre a situação de fome no Nordeste em que as pessoas cozinhavam farinha com água e era exatamente o que tinha pra hoje.

Homemade Ugali
Ugali nada mais é do que água fervendo e você joga farinha. Acabou. Com isso, você coloca qualquer legume que quiser, mas o pessoal daqui da casa fez um molho de tomate com alho, cebola e Mchicha (um negócio verde que não sei dizer o que).

Então, alimentação funciona mais ou menos así:

Fora isso, as opções de cardápio daqui são escassas e eles têm apenas mais dois pratos típicos, Chips Mayai (omelete de batata frita) e Pilao, que já até mencionei outra vez. Carne é inviável, porque a maioria dos açougues é a céu aberto e as carnes ficam curtindo um bronze sem saber que estão ficando podres por dentro (beleza interior é importante).

Sinto muita falta de qualquer comida. Amanhã pretendo comprar macarrão na vendinha, uns tomates e tentar fazer uma gororoba gostosa. Queijo ralado? Nada disso Regina, por essas terras não há sequer queijo, quem dirá ralado. Pelo menos dá pra comer com o palitinho novo.


sábado, 23 de fevereiro de 2013

Onde Os Canhotos Não Tem Vez


Já tinha reparado as pessoas me olhando esquisito enquanto eu comia, mas olhar esquisito pra Mzungu aqui, como falei no último post, é normal. No entanto, chegando em casa pra comer o meu jantar (arroz com.. arroz), fui repreendido pelos locais que moram aqui por estar comendo com a mão esquerda.

Se já não fosse suficiente o fato de comer com a mão, comer com a mão esquerda não podia. “Você come com a mesma mão que usa no banheiro?”, foi a pergunta deles. Daí me explicaram que usar a mão esquerda aqui é muito feio, falta de educação e que tá errado, porque você não deve usar a mesma mão “do banheiro” pra comer, sendo a direita a certa pra comer.

Uma menininha na sala de aula já tinha me dado uma dura por estar escrevendo no quadro-negro com a mão esquerda, mas não sabia que era nesse nível de falta de educação. E eu que sempre fiz tudo com a mão esquerda vou ter que me virar pra ser ambidestro.

Já que o assunto é banheiro e que tinha gente reclamando a falta de fotos, eis uma foto do meu toalete (leia em francês pro contraste ficar mais visível). 

Parfum des Anges
Ir ao banheiro aqui é realmente uma missão por simples quatro motivos: (i) a porta é “trancada” com um balde de água, já que não tem fechadura; (ii) cada um tem que levar o seu próprio rolo de papel higiênico e não tem onde apoiar; (iii) tudo é feito em pé; (iv) não tem descarga, no final dos trabalhos você deve pegar a água do balde que trancava a porta pra jogar dentro do buraco e torcer pra que tudo desça e descanse em paz no fundo da vala.

Pra fechar a sequência com balde de ouro (já que não tem chave), higiene:

Tudo aqui é muito sujo. E como é muito quente, não tem nem muito essa de tomar banho porque no final do banho, dada a dificuldade de botar a roupa e guardar tudo, já se está suando feito um leitão à pururuca. O chuveiro, por exemplo, fica do lado desse buraco bonito que se apelida carinhosamente de vaso, embora não exista vaso ali (rua dos bobos, número zero).

A gente anda na casa de chinelo o dia inteiro, porque o chão tá sempre muito sujo também. E os chineses capricham quando a matéria é sujismundice. Lembra daquela brincadeira “o chão é lava”? Então, aqui o chão não é lava, mas se você tirar o chinelo, o pé já fica preto, e fica mesmo. A roupa de cama é igualmente muito suja e o travesseiro... Ah é, não tem travesseiro, é só meu casaco.


Como na casa tem vinte pessoas (sendo treze chineses) e um só banheiro, até escovar os dentes é complicado, porque tem fila e a pia é limpinha, como dá pra imaginar. Outro dia mesmo rolou uma dor de barriga e eu tive que esperar uma chinesa sair do banho chorando porque tinha sido assaltada aqui perto. Complicado, mas camarão que dorme a onda leva.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

No Racism


Ainda sobre a primeira casa, lembrei de um troço importante. Como a média de água gasta por pessoa aqui é de 20L/dia (ao contrário do Rio, se não me engano 270L/dia), ninguém lava a louça com água corrente. Como são duas pias na cozinha, uma é tampada e cheia de água enquanto a outra fica vazia. Então todos os pratos, bacias e baldinhos são jogados nessa água suja e é preciso ir enxaguando e lavando enquanto a comida cai naquela água bacana.

Só pra garantir que consegui passar a imagem certa, sabe aquela água imunda da pia que todo mundo tem “nojinho” de meter a mão? Então, é ali que a louça é lavada, cheia de resto de comida dos outros e o cacete. Punk? Nada, delícia!

Mudando o foco, vivenciei uma experiência no mínimo diferente do ponto de vista legal. Chegando ao local da barca, umas 30 pessoas aglomeradas em volta de um só camarada e sentando a porrada no amigo, pra valer. Quando perguntei pros locais da minha casa do que se tratava, me disseram que era um ladrão pego no ato e que quando é assim, não tem polícia não, é mão na cara direto mesmo. Um minuto de silêncio pro ex-ladrão.

Pra falar de coisa boa, o trabalho voluntário de dar aulas de direitos humanos começou essa semana e é sensacional. Estou dando aula em um colégio, St. Thomas e um orfanato, Tabata Muslim. No colégio, a turma tem 70 alunos que não falam inglês muito bem e a média de idade é 16 anos, o que faz a tarefa se tornar um desafio (swahili não dá). No orfanato, são cerca de 60 adolescentes de 18, 19 anos que falam inglês muito bem, então show de bola (acabou a luz, de novo).

Hoje vou falar do povo daqui, passando por racismo.

A população da Tanzânia não é muito receptiva e hospitaleira não, principalmente com quem vem de fora. O problema, aliás, não é nem muito o fato de ser “gringo”, mas por ser branco. Eles têm esse apelido pra quem é branco, “Mzungu”, que comparando, é como se fosse “negão” ou “crioulo” pra quem sofre racismo por ser negro.

Eu ouço Mzungu o dia inteiro, é impressionante. Entrando no ônibus, chegando no trabalho, saindo. Chega a cansar de tanto Mzungu que se ouve aqui. Eu acho que na hierarquia, tem os bêbados, os mendigos e os Mzungus. Ontem mesmo uma senhorinha no Dela-Dela parecia protestar em swahili pelo fato dos Mzungus não cederem o lugar pra ela sentar. E no tempo que estou aqui, só vi outros 4 Mzungus fora os chineses e a alemã da casa que habito.

Pelo Wikipédia, Mzungu significa menino branco e supostamente seria só isso. Mas já foi dito pelo pessoal da casa que mora aqui em Dar es Salaam e é também perceptível que isso é utilizado numa forma pejorativa na maior parte das vezes. Assim como “preto” é uma cor mas pode vir a ofender pessoas negras, Mzungu é só “menino branco”, mas usado da forma “agressiva”.

P.S. Quatro casos de malária na casa, brabo. Preciso ficar ligado, mosquito à rodo aqui.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Dura Realidád


Saindo do aeroporto fomos direto ao supermercado, comprar algumas coisas básicas como sabão em pó (não tem máquina de lavar), sabonete, shampoo e papel higiênico (isso ainda vai render uma publicação inteira, porque ir ao banheiro é uma missão).

Como meu primeiro destino foi a casa errada, conheci mais um brasileiro e outro moçambicano, os dois falantes de português, o que dá certa tranquilidade no perrengue incomensurável. A casa tinha redes por todo canto, em todas as janelas e ali já não se comia com talheres. Até tinham alguns “hashis” (“chopsticks” ou só palitinhos), herança da recente passagem chinesa por ali, mas ninguém usava.

Demorei muito tempo até chegar ao meu destino final, já que fiquei emprestado nessa casa até segunda-feira e lá tive que comer Pilao (prato típico feito de arroz e um molho esquisito) numa bacia com mais 8 pessoas (e com a mão, claro), numa situação de dar inveja aos recrutas do BOPE no filme Tropa de Elite (“os senhores tem 10 segundos pra comer essa merda do chão”). Também limpamos a garagem da casa pra fazer uma biblioteca pras crianças da comunidade local.

Ter chegado na Tanzânia no sábado causou certo desespero porque não se vê sentido em passar por isso tudo se não for pelo trabalho voluntário a ser realizado. Como essa motivação demorou três dias pra dar as caras, já que só comecei a trabalhar na terça-feira, fui acometido de algumas fortíssimas vontades de jogar tudo pro alto e uma série de pensamentos do tipo “cacete, aonde eu vim parar”, porque naquela casa no meio do nada já faltava luz e água .

Apesar disso, saí no mesmo sábado pra uma praia chamada Cocobeach, supostamente um dos pontos tops da cidade, que nada mais é do que uma casa de palha na areia com um telão passando clipes de hip-hops e mesas de plástico mal distribuídas. A cerveja Kilimanjaro é boa, mas a Serengeti é melhor. Voltei de Bajaj, numa aventura incrível pelas vias mãos inglesas (o veículo é esse aqui, uma moto com cabine, increíble). Então, motorista na direita e um medo nada bacana.


Aproveitando a deixa, vou falar de transporte logo:

Existe táxi por aqui, mas ninguém usa porque todo mundo cabe numa Bajaj. Mesmo sendo feia e instável, a Bajaj é um dos veículos mais usados na cidade e é tipo um moto táxi, custando até uns 20.000 shillings (coisa de 12 dólares). Antes da Bajaj, a opção número 1 de transporte da cidade é o Dela-Dela, uma espécie de ônibus-van sujo que vai pra vários lugares por 300 ou 400 shillings (U$0,20, isso mesmo).

"Se essa porra não virar, ole ole olá"'

Pra chegar até os colégios em que dou aula, preciso pegar dois Dela-Delas e o Ferry, porque moro na espécie de Niterói da Tanzânia (nada é tão ruim que não possa piorar). Pra ir gasto 900 shillings, cerca de U$0,60 e o mesmo pra voltar. O chato é que além de ser sempre lotado e baixinho (quando se vai em pé, tem que ir com a coluna no teto), demora duas horas e meia pra ir e mais duas e meia pra voltar.





quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Primeiras Impressões


A chegada ao aeroporto de Dar es Salaam, bem parecido com o terminal rodoviário do Rio de Janeiro, só que menor, já foi bastante impressionante. Não bastasse o calor a lá Bangu do aeroporto (sem ar condicionado, claro), ainda tive que ficar na fila pra conseguir meu visto por 50 dólares cerca de duas horas. Se eu tivesse passado direto e me tornado um imigrante ilegal, ninguém nunca saberia, porque tinham vários guichês vazios e nenhum controle pra sair do aeroporto.

Ninguém da AIESEC foi me buscar, mas por sorte, foram buscar uma amiga minha que veio fazer o trabalho voluntário por outro comitê da AIESEC. Por isso, acabei indo pra casa errada e por lá fiquei por mais dois dias, chegando ao destino final só na segunda-feira.


No caminho pra essa casa o cenário já era de filme. Sabe aquelas cenas de filmes na África, como Blood Diamond (Diamante de Sangue) ou Machine Gun Preacher (Redenção)? Então, é exatamente assim. O primeiro pensamento é voltar, na hora. Como nunca fui de perseverar muito, achei melhor insistir dessa vez pelo trabalho e pelo pessoal que me esperava pras aulas de direitos humanos.

A foto vou ficar devendo porque não consegui parar de olhar pro que estava acontecendo. O trânsito é um caos e as condições de vida da população local, piores. Vale a pena dedicar uma frase ao cheiro, que dá até saudade de um ônibus ou uma van lotada lá do Rio.

Também tive a oportunidade de ver um grupo de crianças de uns 13 anos roubando gasolina dos carros que paravam no sinal de um cruzamento complicado, o que foi bastante impressionante pra uma primeira ideia da cidade. Mas não parecia ser nada demais, já que os motoristas só reclamavam e buzinavam mas seguiam em frente como se nada tivesse acontecido.

Não posso me estender muito no post, caso contrário vai ficar longo e chato de ler. Então, a partir de agora, pretendo escrever sobre uma “parte” da vida aqui por vez, falando de comida, água, trânsito, higiene, violência, preconceito e por aí vai. Beijos suados que tá quente pra cacete.



Dubai

A aventura começou com uma despedida emocionante dos meus pais e de um amigo (valeu Pedrinho!) no aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro. Eu me esforcei o máximo para não chorar e quase consegui, não fosse pelas lágrimas absurdas da mamãe que acabaram comigo. Todo o processo de empacotar o mochilão, arranjar todas as providências necessárias e conversar com o máximo de pessoas possível havia me preparado pra quele momento, mas não havia preparado tanto assim a família, que naturalmente, ficou preocupada à beça.

Partindo do Rio para São Paulo, não deu nem pra ter conhecimento da “ficha”, que só foi cair quando o voo da Emirates pousou em Dubai. Por falar na companhia área, que maravilha! Mil opções de filmes, inclusive recém-lançados e uma poltrona que contava até com tomada para carregar os aparelhos eletrônicos, mas que de tão confortável me fez dormir 10 horas.

O aeroporto de Dubai, assim como a cidade toda, é coisa de primeiro mundo. Não que eu tenha visto tanto assim, afinal fui fazer um city tour de meia-noite até as duas da manhã que só parou pra conferir o Burj Al Khalifa e o Burj Al Arab de perto e pra dar uma voltinha num cinco estrelas dos muitos da cidade. Como consegui um voucher pela Emirates pra dormir em hotel até a viagem do dia seguinte para Dar es Salaam, peguei um shuttle até minha hospedagem e descobri que tinha direito ao jantar e ao café da manhã. Não preciso dizer que mesmo sem fome nenhuma devorei o jantar, só porque eu tinha direito.

Neste city tour, descobri que Dubai tem um milhão e oitocentos mil habitantes, sendo apenas 20% “locais”, que a gasolina é mais barata do que água (1L Gas = 1 dirham; 1L Água = 2 dirhams), que a maioria das casas funciona num sistema de leasing, com direito à residência por 99 anos (portanto, tax free) e que não há álcool, casinos ou violência por acá también. E eles tem uma mania surreal de construir torres, porque é o que mais tem (e depois cobram uma diária de quinze mil dólares, como é o caso do Burj Al Arab).

Ansiedade batendo, sono sem bater e um quarto espetacular contrastando com a dura realidade de amanhã, Tanzânia. Aliás, esse ponto foi o que mais me chamou atenção nessa escala, já que Dubai é a referência de esplendor e riqueza na Terra, enquanto Dar es Salaam, mais ou menos o extremo oposto (ou assim imagino, amanhã descubro).


Então vou nessa, tentar me comunicar com a galera do lado ocidental do mundo, enquanto deixo vocês com a música do dia. Não prometo atualizar todo dia, até porque pretendo fazer muitas outras coisas durante a viagem, mas é compromisso atualizar isso aqui periodicamente, com novidades do trabalho voluntário, do país e da cultura. Beijo nas crianças!

P.S. Esta publicação se atrasou quase uma semana porque as condições na Tanzânia são bem complicadas, como pretendo relatar nas próximas postagens!