domingo, 31 de março de 2013

Arusha


Saí de Moshi às dez da manhã, de acordo com o horário de check-out do hotel. Claro que deu tempo praquele café da manhã reforçadíssimo que eu descrevi ontem. Socando roupa na mala até a bagagem pedir arrego, peguei meu troco de mil e quatrocentos shillings com o recepcionista (que ficou adiando o pagamento pra ver se eu esquecia) e parti.

Naturalmente, o cobrador do Dala-Dala pra Arusha tentou arrecadar o dobro do valor da passagem. Sorte a minha que eu já sabia do preço antes, me conferindo poderes pra negar o dinheiro na cara do amigo, obrigado a engolir a tarifa normal. Por ser um ônibus de cidade, tive que fazer todo o trajeto de duas horas com o meu mochilão no colo e a outra mochila na cabeça.

Uma pequenina decepção esta cidade chamada Arusha. Tudo bem ser domingo de páscoa, mas ainda assim nada pra se fazer. Todos os locais diziam se tratar da segunda melhor cidade da Tanzânia, que seria cheia de opções e uma riqueza em termos de diversidade. Não encontrei nada disso aqui. Moshi, que é uma pequena cidade perto do Kilimanjaro, é mil vezes mais interessante.

Assim que dei entrada no meu hotel William’s Inn, inadequado pra mim pelos motivos descritos na placa, fui dar um volta na cidade a pé pra conhecer as principais atrações e descolar o rango nosso de cada dia. Encontrei “bem na praça central um monumento” (Lenine), uma mesquita feiosinha e um estádio de fazer o Engenhão parecer o Camp Nou. Mesmo caindo aos pedaços.

Neste chuvoso domingo, tudo fechado pra comemorar o coelhinho. Não vi sinal de chocolate, mas várias comemorações ao redor da cidade pela data. Em contrapartida, todos os restaurantes fechados, exceto o do hotel. Sem opções, acabei abrindo mão de cinco mil shillings (seis reais) pra comer Ugali com galinha. Até rimou. Tava bom em demasia.

Além de mosquitos, tenho até televisão no quarto. Neste momento, a tarde foi de uma tranquilidade ímpar. Deu pra descansar um bocado e preparar pro safári de quatro dias que começa amanhã! Por isso, sinto informar que o blog estará sendo pouco atualizado. Pros mais assíduos, recomendo shampoo Johnson, chega de lágrimas. Daqui a pouco eu volto.

Uma saudade impagável de dona mamãe, meus avós e senhor meu pai. Tem vezes que vêm umas lembranças desgraçadas e dá vontade de voltar na hora, só pra abraçar essa tropa aí. Acho que estou ficando meio meloso. Vou tentar melhorar pro bem dos visitantes deste humilde espaço internético. Provavelmente, até o dia seis de abril, galerinha! Beijo pra quem fica.


sábado, 30 de março de 2013

Kilimanjaro



Oito da manhã na porta do Kilimanjaro Backpackers Hotel pra encontrar com Danken, o guia. Depois de um café da manhã de chorar, com pão, café, melancia e panquecas até passar mal, parti num Dala-Dala rumo a Marangu, local onde se situa a rainha das montanhas africanas. Mais de uma hora chacoalhando numa van transbordando gente, cheguei.

A primeira subida ao local inicial da trilha Marangu Route, o mais famoso dos percursos, foi feita de táxi. Nesse momento, o motorista me fez o imenso favor de colocar Bob Marley no mais alto volume possível, gerando um momento de felicidade intensa como poucas vezes. Afinal, não é todo dia que se está ascendendo rumo ao Kilimanjaro na Tanzânia, África.

Nessa hora, o gigante já se encontrava pertinho. Pouco visível, pro meu azar, pelas muitas nuvens existentes nessa época de chuva. Cheguei a ver o pico, mas vou ficar devendo a foto porque não tinha como pegar no momento certo ou focalizar. Experiência increíble de sentir a atmosfera de dois quilômetros de altura no início do caminho pro céu.

Saindo de lá, desci a ladeira e fui agarrado por uma senhora idosa, me chamando de irmão sem motivo aparente. Não entendi nada, mas aprendi uma importante sigla ensinada por Danken que explica alguns dos fenômenos do continente: TIA. O significado? This Is Africa. Ainda tem um M no final de TIA, mas por ser um palavrão não vou expressar nesta página imaculada.

Após esquisito episódio e com muito chão percorrido, entrei nas plantações de banana e café de vários pequenos produtores. Mato adentro, dei de cara com uma vila da tribo Chagga, nem tão famosa quanto mas distinta dos Maasai por criar Ngombe (gado) em ambientes fechados e não abertos. Nessa hora comecei a fabricar café tirado do pé, que consumi junto com uma generosa refeição.

É muito normal observarmos de pessoas que tem menos condições financeiras uma generosidade maior. Foi quase um banquete com batata, banana com feijão e ervilha e abacate removido do abacateiro na hora. Fora isso, o café tava uma “diliça”.  A oportunidade de moer o grão, ferver, moer de novo pra tirar a casca e jogar na água quente foi extraordinária.

De lá pra Kilasiya Waterfalls. A cachoeira tinha uma vista sensacional também, que fiquei apreciando parado por uma meia hora. Dava até pra mergulhar, mas um frio danado não era lá um bom motivador. Fechei o dia pra guardar na cabeça num segundo almoço de Ndizi Nyama (banana verde com carne) seguido de uma rápida passada num Baobab (a árvore) lindo de “morrê”.

Não lembro se já disse aqui, mas a maioria dos tanzanianos não sabe nadar. Danken disse que era capaz da arte porque tinha que atravessar um rio todo dia durante alguns anos a nado pra chegar na sua escola. Isso tudo com a mochila na cabeça pra não molhar o material escolar. E tem gente fazendo de tudo pra fugir da aula. Que feio, que feio.

Esses momentos assim valem a pena pra guardar na memória principalmente pra serem resgatados quando as coisas não vão bem. Inenarrável a vista do Kilimanjaro descendo a ladeira (da preguiça) direto do início da ascensão. Entrar na tribo e tomar café com os Chagga num clima de cordialidade total e admirar uma cachoeira por meia hora. Sem palavras. Boa noite, hasta mañana!

sexta-feira, 29 de março de 2013

Moshi


Após onze horas dentro de um ônibus apelidado de galinheiro, por ter muito lixo no chão e gemer a cada quique do veículo na estrada de terra, cheguei a Moshi, a cidade do Kilimanjaro. Apesar do longo tempo de jornada, fui premiado várias vezes com cenários espetaculares. Pra fechar a exposição de dar inveja a qualquer biólogo/geólogo/geógrafo, o teto da África: Kilimanjaro.

O caminho seria ainda mais excepcional, não fosse pelo imenso contraste de miséria absoluta com a diversidade ambiental. Apesar das paisagens exuberantes e nunca antes vistas na história desse país, não dava pra ter uma sensação libertadora ou proveitosa. Aliás, não consegui ter sensação nenhuma, o que me frustrou muito. Momento vivido sem emoção é momento desperdiçado.

Talvez tenha me fechado pra não sentir o golpe das condições de vida lamentáveis que vi. Tudo bem, passou. Ademais, depois de algumas horas trancado num ônibus com vários locais, é fácil virar atração de circo. O Mzungu virou objeto de estudo de tal forma que nem em Harvard conseguiriam igualar a profundidade da análise. Que saco.

Prosseguindo, a cidade parecia e é de fato bastante convidativa. Bem mais pacata que Dar es Salaam, a economia gira em torno dos Mzungus que se aventuram por cá pra tentar subir o pico mais alto do continente, com seis quilômetros de altura. Eu queria, mas desembolsar mil dólares pela tentativa não tá pro meu bico não.

Depois de um jejum de vinte e quatro horas sem comer comida de verdade (resto de cereal ontem a noite e pacote de biscoito no terminal as cinco da manhã) e fedendo a percevejo velho, consegui tomar um banho quente num hotel meia estrela com jeitinho de cinco. Sem muita disposição de me aventurar em restaurantes distantes, morri no Chips Mayai do vídeo.


Além de sair pra comer, deixei agendado pra amanhã um tour ao redor do Kilimanjaro incluindo passeios por uma cachoeira bem famosa daqui e uma plantação de café. Começa às oito da matina e acaba às quatro da tarde. Como o quarto do hotel me custa nove dólares a diária incluindo café da manhã, deu pra desembolsar mais um cash nesta aventura tanzaniana. Amanhã digo como foi.

Pra fechar, queria falar de um cara que faz aniversário amanhã. Um cara que dá uns moles de vez em quando (assim como eu), que é teimoso feito mula no telhado e até chegou a se opor a essa experiência. Apesar de tudo, eu amo demais esse camarada e antes dele, minha vida era um saco. Literalmente. Parabéns antecipado e publicamente, pai. Você sempre será O cara pra mim. Muitos anos de vida pra que você possa me assistir ganhando várias argumentações de você, como essa da viagem valer a pena. Ponto pro filhão.

quinta-feira, 28 de março de 2013

A Última Fortaleza


Em Dar es Salaam, foi. Acabou e deixou pra trás uma lembrança inenarrável e experiências que nunca cogitei sequer existirem. Acima de tudo, a sensação de dever cumprido e uma felicidade imensa por saber que fiz o máximo que pude. Não foi só uma ideologia que deixei na cidade, mas um pedacinho do meu coração que vai sempre me fazer lembrar como tudo aconteceu.

Deixar a cidade vai ser um desafio grande, já que foi meu templo de experiências e aprendizados pelo período de tempo ínfimo e eterno de quase dois meses. Muito mais do que falar de Direitos Humanos, sentir na pele os efeitos, práticas e consequências de violações deste nível gera uma percepção grande do problema e uma preocupação do mesmo tamanho. Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades (vide Homem-Aranha).

Posso dizer que Dar es Salaam foi muito mais pra mim do que eu fui pra Dar es Salaam. Cheio de dúvidas e incertezas, vim com o objetivo altruísta de fazer alguma diferença pelos jovens tanzanianos e com a meta egoísta de me encontrar profissionalmente (e em muitos outros sentidos). Hoje dá pra afirmar que sei exatamente o meu norte e isso graças a esse pedacinho do mapa africano.

Infelizmente, é bastante verdadeiro quando dizem que você se acostuma com as condições de miséria e pobreza. Confesso que depois de algum tempo, até colocar alguma foto no blog me gerava dúvidas se aquela imagem seria impactante e traduziria a realidade vivenciada. Isso não pode acontecer. Ninguém deve se acostumar a ver crianças na chuva enchendo garrafas d’água, sem mochila pra carregar o material ou sem recursos pra almoçar.

Como sou uma moça pra despedidas, quase rolam umas gotinhas brotando do olho. Ainda bem que homem não chora (nem por dor, nem por amor). Ainda nem me despedi do pessoal da casa que fez a vivência muito mais intensa e interessante e já sinto falta de tais cidadãos. Cada um contribuiu com um pouquinho (ou muito) de informação e emoção ao contexto, gerando novas reflexões e sabedorias.

Meu dia foi uma sequência de eventos que dariam inveja ao efeito borboleta. Saindo de casa atrasado, um caos na barca pra pegar só a segunda. Entrei e fui recepcionado por um menininho pedinte, que me xingou muito só por não contribuir. No final da viagem, desci do ferry com tampinhas de garrafa sendo arremessadas nas minhas costas. Por não ter feito nada, juro.

Depois da reunião com a coordenadora, tentei em vão pegar um ônibus pra Ubungo, onde se localiza o terminal rodoviário pra comprar a passagem pra amanhã. Desisti e fui almoçar na universidade conectada à AIESEC. Após o rango, um camarada da organização que eu não conhecia se apresentou e não só sugeriu que comprasse a passagem num local bem mais próximo como me levou lá e fez a compra pessoalmente, pra garantir que não cobrassem preço de Mzungu.

Tudo certo pra sair da casa amanhã às quatro da manhã. Neste momento, preciso de um milagre pra fazer todas as roupas entrarem ordenadamente no mochilão. Na bagagem, muita saudade e conhecimento adquirido nesse tempo todo de Tanzânia. Destino: Moshi. Objetivo: Meditar ao pé do Kilimanjaro. Bons ventos pra mim!

Música, Maestro


Pra “cerejar” o bolo tanzaniano, vou falar um pouquinho de la musique no continente africano. Com alguns estilos bem diferentes, tem de tudo. Pra começar, Bongo Flavor é uma espécie de hip-hop cantado em suaíle e outros idiomas simultaneamente. Não curti muito não, agitado por demás. Por ser fã de música de antigamente, por acá achei um velho tesouro. Zilizo Pendwa (ao pé da letra, música antiga) é aquele tipo que todo mundo liga à África quando escuta. Tipo essa aqui, ó:


Pra ilustrar o tal do Bongo Flavor, já lancei uma música em alguma publicação minha. Ah, achei. Clica aqui. Acontece que o rap e o hip-hop possuem uma fortíssima influência na música atual. Em todos os lugares, existem adesivos e camisetas com artistas norte-americanos e uma galera considerável escutando o “pequeno Wayne” ou “dinheiro novo” (Young Money) falando besteira.

Não é porque não sou fã do tipo de música, mas para pra pensar no efeito psicológico desse tipo de letra na população local. Uma parte considerável da população não recebeu instrução suficiente em termos educacionais. Daí vem um camarada instigando dar tiro nos outros, falando das suas “piranhas” e de consumo de drogas.

Ainda não sou um velho de oitenta anos (falta pouco), mas até a minha opinião em discussões sobre a influência dos videogames (tipo GTA) no comportamento de pessoas mudou. Sem ter recebido uma educação de qualidade, o discernimento de um indivíduo pode ficar extremamente comprometido. Não significa que 100% dos casos irá gerar um camarada alucinado dando tiro nos outros de graça, mas sim que as chances são bem maiores de causar alguma atitude, principalmente conciliando com a música.

Em Gana, fez sucesso uma canção no mínimo polêmica. Assim como o lance do Mzungu é uma epidemia geral no continente, a palavra Asonto em dialeto local significa "branco". Então o pessoal resolveu tirar um onda com a cara dos londrinos e foi pra terra da rainha gravar o clipe dançando na rua no meio de.. pessoas brancas. Não entendi muito a repercussão, mas beleza. O clipe é esse aí.


Voltando ao tema de Beethoven (não o cão, o músico), muitos artistas que fazem um sucesso absurdo não chegam sequer ao conhecimento da rapaziada tanzaniana. Era bonito de ver a perplexidade e a admiração por ouvir um Jack Johnson pela primeira vez. Tantos outros artistas internacionalmente renomados também não tiveram vez por aqui. Pra ilustrar, quase ninguém sabia o que era Pokémon, a febre japonesa que assolou a infância de milhares.

Não é só de coisa ruim que se constrói uma indústria fonográfica. Um desses hip-hop’s escutados por acá é de um sujeito chamado Asher Roth. Música bem boa. Ainda descobri uma Nigeriana chamada Asa (leia-se Asha) que partiu pra França e faz cada música absurda de boa. Essa vale conferir sem nem pestanejar.  No mais, partindo pro encontro com a coordenadora e pra comprar as passagens de ida. Tá acabando, tá acabando.


quarta-feira, 27 de março de 2013

Socialização Social: Parte 2


Gás voltou, macarrão sem queijo pra dentro. Países entrando em guerra, outros em situação de miséria. O mundo explodindo, discussões exacerbadas ao redor do globo. Pra qualquer lugar do mapa que se aponta, existe algum problema acontecendo. Nunca se passou por tempos de crise desta dimensão e todos se perguntam: quem lava a louça?

O sistema até funciona. Tirando aquele sentimento gostoso quando alguém pega o último gole de água da garrafa de plástico, some com uma camisa sua ou come aquele alimento que você estava guardando na geladeira por uma semana só pra se deliciar después. Ou até aquele outro quando não há tomada disponível na casa pra carregar seus “equipameintos” (leia à paulistana). Ou ainda quando alguém bota o secador de cabelo na tomada e explode o curto. Episódio narrado em tempo real, acabou de acontecer.

Compartilhando o tempo ocioso, criei junto com os locais e a alemã um vídeo espetacular pra uma feira de carreiras da AIESEC. Custou quatro dias, contando com o planejamento necessário e o script. Trata-se de um stop motion sobre o evento, convidando os alunos (estima-se mil alunos). Tá pronto, mas não tenho a peça no computer por agora. Nos próximos dias puxo do YouTube sem falta.

Por falar de sharing, compartilhei uma gripe nada legal nos últimos dias. Devido à contribuição de todos ao gargalo da garrafa, a gripe se prolifera na casa mais rápido que peste bubônica. Daí a atualização em ritmo irregular, ainda que diária. A suspeita de malária é a primeira aposta, mas malária não entope nariz. Nunca fiquei tão feliz de não sentir o gosto de nada.

Situação desesperadora me ocorreu nesta semana. Fiquei na dúvida se deveria botar aqui ou não, mas acabei de decidir. A casa conta apenas com um banheiro funcionando pra todos os moradores, certo? E o que fazer quando o único sistema de saneamento da “residença” entope? Junto com a gripe veio uma consequência estomacal punk rock.

Como a água consumida é vendida em garrafas de até dez litros, aproveitei a criatividade brasileira pra dar um jeito. Cortei a parte de cima da garrafa grande e improvisei um vaso sanitário. Posso afirmar com certeza que foi a pior experiência “banheirística” da minha vida. E você, já abraçou seu assento hoje? Pelo menos sorri pro espelho do toalete, vai.

O dia foi de muita chuva. Por isso, elaborei uma nova técnica de lavar a roupa. Disponho apenas de baldes e sabão em pó, então funciona assim: misturar sabão com água (óóh), colocar todas as roupas e deixar de molho. Nada novo, até a parte de pendurar as roupas ensaboadas pra chuva tirar o sabão. Se mamãe não lava, mamãe natureza dá conta do recado.

Amanhã devo encontrar a coordenadora do projeto pela última vez e comprar a passagem apenas de ida pra Moshi. Além do Kilimanjaro pertinho, dizem que a cidade tem vários pontos interessantes pra se visitar. Enquanto isso, vou me despedindo da casinha que tanto contribuiu comigo. Mesmo com os ratinhos comendo o meu pãozinho do café da manhãzinha.

terça-feira, 26 de março de 2013

Bagamoyo


Trata-se de cidade de trezentos mil habitantes ligeiramente ao norte de Dar es Salaam. Foi a primeira igreja católica na costa leste africana, bem como um dos mais importantes portos de slave trade. Depois de três ônibus lotados e um ferry só pra chegar lá, era difícil compensar o perrengue. Compensou bonito. Graças ao guia que o acaso colocou na frente de três gringos perdidos no meio de Bagamoyo: eu, a alemã e uma queniana.

Caindo de paraquedas na estação rodoviária, fomos atrás de um banco, pois Maggie (proveniente da minha próxima morada, Nairobi) precisava cambiar um money. Na fracassada busca, o guia nos encontrou. No estilo “não é necessário pagar, mas vou tirar todo o seu dinheiro no final”, ficou nos dando direções e “fondo, fondo” acabou que foi pelo dia inteiro.

A jornada foi iniciada pelo museu de Bagamoyo, que embora possua apenas três ambientes e cômodos diferentes, possui mais informação do que o Museu Nacional da Tanzânia. Primeiro o comércio de escravos rolando solto até pleno século XX. Iniciado pelos árabes e continuado pelos alemães até a retomada britânica, chega a dar uma “compreensão” do preconceito ao Mzungu, que sempre que deu as caras no continente veio pra aloprar tudo e todos.

Ao mesmo tempo em que os alemães construíam escolas e hospitais, escravizavam a população local. A história de Bagamoyo é parecida com a de Zanzibar, mas com uma diferença fundamental. Quando a intervenção inglesa tomou lugar, a cidade tornou-se um porto seguro para ex-escravos, com as primeiras colônias de liberdade do país. Um lugar pra que o escravo liberto pudesse recomeçar (ou começar) a vida.

Saindo do museu, fomos à praia e vi uma de duas cenas que exigem maiores explicações. Num cenário espetacular, algumas mulheres rezando ao pé da cruz que fica perto do mar. Se elas estão agradecendo, o que agradecem? E se estão pedindo, pelo que pedem? As ambições e orações destas senhoras certamente seguem marés muito diferentes daquelas que se costuma praticar. Exercício do dia: decifrar a cabeça das madames.

Por falar em cruz, ia me esquecendo de dizer um fato extremamente curioso. No museu, existe um livro com a história do catolicismo em quadrinhos. Nessa história, Jesus é representado por um cidadão negro. Bacana! De repente pra aproximar a religião da realidade local, os padres missionários da época passaram as lições e pregaram a sua fé com uma representação negra enquanto pessoa. Ponto pros missionários. Agora reparem que o peito do pé de Pedro é preto. De verdade.

Seguindo pela praia, sempre espetacular, chegamos a um dos mais importantes portos pesqueiros nacionais. Não era nada demais, mas como a cidade vive basicamente da pesca, quem não sabe pescar lá não pode viver. Presenciei um leilão de peixes com arraias e peixes-agulha. Até chegar no lugar em que ocorreu a segunda situação do dia.

Tirando a foto ao lado, ouvi alguns dizeres em suaíle que pareciam raivosos e dirigidos a mim. Como Maggie fala suaíle (mesma língua no Quênia), me contou o que foi dito pelo cidadão. “Esses europeus vem pra cá, tiram as fotos e vendem no seu país. Depois nunca mais aparecem”. Faz sentido, uma vez que algumas pessoas realmente tem esse comportamento. O detalhe é que os rebeldes contrários ao governo alemão eram enforcados aí.


Parti ainda às ruínas de Kaole, que um dia foram duas mesquitas e um cemitério islâmico datados do século XIII. Existe uma natureza fora de série ao redor que dá um clima de calmaria danado ao ambiente. Previamente cansado pela jornada de cinco horas de retorno à residência (justificando o atraso nesta publicação), tive que trocar o ônibus da volta no meio do trajeto porque o pneu do amigo estava quase saindo, desesperando os passageiros. Caminha dura que segue! Boa noite!


segunda-feira, 25 de março de 2013

Santuário

Tem vezes que as coisas ficam complicadas. De vez em quando, depois de se ver tanta coisa, perde-se um pouco a motivação de enfrentar os problemas porque o “monstro” é muito grande. Esse gás volta depois de um tempo. Principalmente depois de passar um bom tempo no santuário, conhecido também como Kipepeo Beach.

Apertou? Praia neles. Os tanzanianos dão nomes diferentes a pedaços diferentes da mesma praia. É como se numa mesma faixa de areia, por exemplo Copacabana, se tivesse Praia de Santa Clara, Praia de Figueiredo de Magalhães, Praia da República do Peru. Não faz sentido nenhum, mas alguns destes balneários são de propriedade privada. Daí a distinção.

Kipepeo custa cinco mil pra entrar aos finais de semana, com consumação. Durante a semana é zero oitocentos. Lógico que à brasileira, a tática é entrar pela lateral, terreno baldio, e pegar uma mesinha no esquema gratuito. Que me perdoem os proprietários, mas cobrar cinco mil shillings (mais do que duas refeições) só pra pegar uma mesa não dá não.


Acontece que a água morna do Oceano Índico é sensacional e tem umas três tonalidades diferentes de azul. Pra melhorar o cenário, uma calmaria sem fim. Nada de muitas ondas. Mentalizou? Agora imagina uma natureza surreal ao redor, com menos de cem pessoas na areia mesmo durante os finais de semana. Bem-vindo a Kipepeo Beach.

A fórmula é quase de miojo. Trinta minutinhos dentro do mar (com um ligeiro medo de tubarões, como sempre) e pronto. Pode sair da água renovado e sem maiores preocupações. A praia privada ainda conta com instalações de segundo mundo bem superiores às presentes na casa que habito. Então praia é sinônimo de alegria e bem estar em todos os sentidos.

Aprendi há algum tempo atrás algo que não sabia devido ao background urbano. Como existem diversas galinhas em volta da casa e ao redor de Kibaoni (bairro), perguntei a um local como eles sabiam quais aves eram de propriedade de quem. A resposta foi surpreendente: as galinhas sabem. Quer dizer que o bicho pode ficar solto o dia inteiro que no final do dia vai se recolher pra sua morada. Bacana.


Ninguém rouba galinha do outro porque existe uma crença popular dizendo que aquele que confiscar uma galinácea que não de sua propriedade irá passar mal e morrer. Não duvido de mais nada de cá. Ciente dessas circunstâncias, bolei um plano mirabolante. Vou comprar um galo e soltar ele no meio do nada. Ninguém jamais saberá que é meu e ele não vai ter pra onde ir, intrigando toda a população. Quanta maldade.

domingo, 24 de março de 2013

Os Tribalistas


Depois de ficar literalmente o dia inteiro sem luz, nada mais adequado do que escrever sobre hábitos culturais excêntricos de povos indígenas que habitam as terrinhas tanzanianas. Aprendi sobre tais comportamentos com os locais daqui, bem como com algumas figuras e ilustrações que vi no Museu Nacional. Tenho certeza que vários amigos se adaptariam a essa maneira de viver.

O que mais me chamou a atenção foi uma “poligamia” legalizada. O homem da tribo Maasai pode se casar com apenas uma mulher. Tudo normal até então. Acontece que quando o camarada tira sua lança da porta pra ir trabalhar, qualquer outro amigo está autorizado a fincar a própria lança na entrada da residência do ausente. E por fincar a lança entenda-se pacote completo. Cama, mesa e banho.

Ih, mas o cara voltou no meio do dia! E agora? Espera o que estiver lá dentro acabar de fazer o que ele quiser fazer, pacientemente na porta de casa. Acabou, cumprimentam-se amistosamente e vida que segue. Ao mesmo tempo em que dá pra sair traçando toda a população tribal feminina, sua esposa pode ser mais rodada do que caminhão velho.

O maridão cansou. No meio do dia, não tá mais querendo andar. Sua mulher pode carregá-lo nas costas, é claro! Pelos hábitos Maasai (a tribo mais famosa da Tanzânia), uma das formas da mulher agradar o seu digníssimo é carregando o sujeito nas costas, num lindo ato de amor. Também é de bom tom que a cidadã ajoelhe-se ao entregar qualquer coisa pro marido, num belo gesto de sujeição. E ajoelhou, vai ter que rezar.

Makonde
Na tribo dos Makondes, sudeste tanzaniano, várias celebridades se acostumariam com o estilo de vida. Um dos maiores sinais de amor e companheirismo é baixar o pau na esposa. Isso mesmo. O homem deve mostrar o seu amor enchendo a mão na cara de sua companheira, sem dó nem piedade. Além, se ele não fizer isso, a mulher irá chorar por acreditar que há algo errado no seu matrimônio.

A mulher grávida não pode ser preguiçosa. Deve andar pra cima e pra baixo fazendo tudo que deveria fazer caso não estivesse à espera de um bebê. O único cuidado que ela tem que ter é com bruxaria, pro bebê nascer saudável. O menino depois de nascido ainda tem que pegar um pedaço de carne dentro da fogueira pra aprender que o fogo é perigoso com o seu focinho.

Alguns desses hábitos vem sendo extintos com o passar do tempo, pela integração cultural e inserção urbana das tribos indígenas. Ainda, vários estão ativos até hoje. Então provavelmente durante a leitura desta publicação, algum malandro está com a lança plantada na porta do seu vizinho. A lei é: não só cobiçarás como concretizarás a mulher do próximo. Pior pro próximo.

sábado, 23 de março de 2013

HIV Positive



A situação da AIDS na África é um problema conhecido por todos. Na Tanzânia, estima-se que duas milhões de pessoas possuam o vírus HIV. Isso significa aproximadamente 8% de toda a população e um número bastante alto pros padrões mundiais. Por isso mesmo, o convívio com pessoas portadoras do vírus é extremamente pacífico. Vale a pena dar uma lida na imagem acima.

Não é “assustador” falar ou cumprimentar com alguém com AIDS. Falar da doença por aqui é algo tão natural que nem causa espanto ou nada do gênero. Se por um lado, tornou-se comum comentar sobre AIDS pela epidemia devastadora no país, por outro, é extremamente benéfico tratar o indivíduo portador do vírus com igualdade e respeito, independentemente de qualquer condição de saúde.

Outro dia mesmo rolou uma interação homem e mulher aqui na casa entre dois locais e um deles “brincou” dizendo que era HIV Positivo, pra tentar causar algum espanto na parceira. A menina até fez uma cara mais séria, mas depois levou numa boa a piada. É tão natural o assunto que se torna esquisito o oposto (estranhar o camarada com AIDS).

Na visita ao Museu Nacional, existe uma parte dedicada só a precaução e prevenção da doença, por ser um problema dessa dimensão. O que é muito bacana, porque parece que há uma campanha grande governamental de conscientização, estabilizando os números da doença na Tanzânia. Usual ver pessoas com AIDS pedindo dinheiro nas estações do ferry.


Esther (voluntária da AIESEC) fez aniversário. Brincando de contar o melhor e o pior aniversário, outra menina disse que o pior aniversário da vida dela foi aos onze anos. Cinco dias antes, sua melhor amiga, portadora do vírus, contraiu uma gripe e veio a falecer. Depois dessa história, qualquer aniversário tornou-se o melhor do mundo, mesmo aquele tenebroso que não se gosta de lembrar.

Julguei valer a pena falar separadamente sobre AIDS por dois motivos: primeiro porque o contato aqui é comum e natural, e não há o que se temer. O contágio ocorre pelo sangue e ser preconceituoso ou ultracauteloso não é de qualquer ajuda pras pessoas portadoras do vírus. Em segundo lugar, a importância de se implementar um sistema de combate à proliferação da doença que vem sendo feito, evitando a morte de diversos populares.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Mwenge Market


Além de buscar minha Constituição autografada, deu tempo de trocar um dinheiro e rumar ao mercado cultural mais sensacional da costa leste africana. Com uma diversidade de encher os olhos, dá pra encontrar tudo (e negociar tudo) que a África pode fornecer.  De chinelos a objetos de decoração, brincos ou panos de mesa, comprei uns presentinhos (prepare-se família). Pra você não.

Quando se chega em Mwenge, a primeira pergunta é a nacionalidade. Saiu a palavra Brasil da minha boca, virei o Ronaldinho, o Neymar, o Ronaldo, o Romário, o Neymar de novo e por aí vai.

Pela infinidade de pequenas lojinhas e como a fome de vender qualquer troço é grande, os locais caem em cima como se você fosse o filho do Bill Gates com o Warren Buffet. Não que tanto seja necessário, porque os preços não são nem um pouco exorbitantes, ainda mais depois da negociação. Haja gogó pra se chegar a um denominador comum.

Só há um dilema. Sabendo que haverá conversa sobre o valor, o primeiro preço proposto é “lá em cima”. A pergunta é: aceitar a imposição reajustada com a “taxa gringo” porque a nova cifra continua sendo bastante pequena ou negociar pra não sair de trouxa e diminuir ainda mais a receita dos vendedores que já não lucram isso tudo?

O que incomoda mesmo são os argumentos. Depois de se tornar “my brother” com todos os vendedores, a frase mais usada é “i’m hungry, you have to support me”. Numa mistura de raiva pela profundidade do argumento (nem tão verdadeiro assim) e pena pela situação, acabei levando algumas quinquilharias que não compraria nas CNTP.

Pequenos incômodos à parte, o mercado é realmente sensacional. A negociação chega a ser engraçada caso se entre na pilha dos comerciantes. Sempre tomando o cuidado pra não pedir um preço que, caso comparado o produto com de outra loja, continuaria superfaturado. Não adianta nada pedir dez mil shillings pra algo oferecido por trinta se o valor é cinco. Perde ou perde.

No final das contas, adquiri um bocado. Espero que os presentinhos agradem. Não é nada demais, até porque esse não é o objetivo da viagem, mas ficou bacana. Lancei dois posts hoje porque falta apenas uma semana pra deixar as terras de Dar es Salaam. Devo fazer isso mais vezes porque ainda tem muita coisa pra escrever. Meu primeiro destino é no norte, Kilimanjaro! Já com saudades de cá. Damn.


Juridiquês


Fiz o jogo de João-sem-braço pra entrar no Parlamento e fui barrado em suaíle por um guardinha do local. Ele me disse que era possível entrar, mas que teria que marcar dia e hora. Esse agendamento deveria ser feita em outra guarita, que fui à procura. Pra minha infelicidade, não localizei a outra guarita do Parlamento. Pra minha máxima felicidade, achei a entrada da Comissão de Direitos Humanos da Tanzânia.

Na tentativa de entrada, fui permitido. Soube que ali funcionava não apenas um centro de pesquisa de Direitos Humanos, com biblioteca extensa e profissionais capacitados, como também um local pra se reclamar sobre qualquer situação passível de violar Direitos Humanos. Ainda ganhei um tour guiado pelo prédio, sob o comando da bibliotecária.

Quem não chora não mama e tratei de pedir um exemplar da Constituição da Tanzânia, que pretendo utilizar como objeto de estudo posteriormente. No mesmo instante, fui conduzido a uma sala e conheci alguns companheiros de profissão. Um deles me recepcionou anotando o endereço de ninguém mais, ninguém menos que o “senhor seu” Advogado Geral da União.

Cabe frisar que as roupas eram extremamente inapropriadas e confesso que me assemelhava bastante com um habitante de logradouros públicos (leia-se mendigo). As visitas de caráter jurídico não estavam planejadas, então fui com as vestes que portava. Demorei pra achar o prédio da AGU, que na verdade era um segundo andar inteiro de um edifício à beira ferry.

Ingressei no recinto e não achei a pessoa indicada pelo advogado de Direitos Humanos para me presentear com a Carta Maior nacional. Sem aceitar a derrota, parti rumo ao bibliotecário da AGU, que prometeu trazer a Constituição atualizada no dia seguinte, vulgo hoje. Cheiro de vitória no ar e Constituição da Tanzânia em mãos pela manhã.

No prédio da Comissão de Direitos Humanos, ainda entrei na cara de pau na sala de reuniões. Um dia quem sabe eu sento naquela cabeceira. Consegui mais cedo alguns exemplares de livros de Direitos Humanos na África. Caso seja do interesse de alguém, podemos brincar de violar alguns direitos autorais e copiar tais livros, uma vez que são dificílimos (senão impossíveis) de se achar pelo território pátrio.

A jornada inesperada rendeu frutos incríveis e histórias inacreditáveis. Ser convidado a conhecer o prédio da Comissão de Direitos Humanos, todo o escritório da AGU e ainda presenteado com uma Constituição autografada (isso mesmo) não é pra boi dormir. Pequenos achados como esses dão ainda mais vontade de seguir adiante. Vamos que vamos que o show não pode parar.