Recebi uma carta. Não estava endereçada a mim, mas eu
era o único sentado na coordenação do colégio preparando a aula seguinte. A
carta veio de um menino e era destinada ao diretor da organização. Não era
apenas um pedaço de papel, mas uma breve autobiografia. O objetivo era
compartilhar sua história e ser ajudado. A carta agora é de vocês.
Essa carta foi o suficiente pra quebrar qualquer
barreira de gelo que me separa da cruel realidade da favela de Mukuro e suas
milhares de crianças. Numa vontade de chorar absurda, respirei fundo e continuei
um planejamento que vou apresentar nos próximos dias. Dos inúmeros raciocínios
que saem dessas letrinhas, delego o exercício. Cada um interpreta como quiser e
aprende o que tiver que aprender. Boa sorte.
Dois meses de África. Mas calma que eu não to com
vontade de escrever um texto filosófico não. Vai ser um dia normal que acabou
refletindo bastante toda a viagem. Parabéns pra mim por esse pequeno namorico
com o continente. Prometo que me esforçarei o máximo pra não me perder em
pensamentos. Ser prolixo é uma das minhas virtudes (ou defeitos). Foco nos
fatos. E os fatos são os que seguem.
Sair de casa as sete de lá manhã pra pegar o bus. Lembra
do Dala-Dala que eu chamei de Dela-Dela por um tempão? Então, aqui é a mesma coisa
mas chama Matatu. Só que por uma lei abençoada, não pode ninguém ir em pé senão
o condutor toma uma multa. O que quer dizer que sempre se vai sentadinho,
curtindo a viagem (preocupado apenas com a presença de ladronáceos). Por outro
lado, os amigos dirigem como se não houvesse amanhã (até porque pode ser que
não haja mesmo).
Fui pro colégio com o hobbit. Chamo o finlandês assim
agora porque ele é igualzinho às criaturas de J.R.R.Tolkien. Realmente é um
alívio danado a companhia do colega de Frodo Bolseiro, não só pela segurança mas
também pra compartilhar o perrengue em geral e dividir os holofotes. Todas as crianças
olhavam para ele, até que ele botou o anel no dedo e sumiu. Aí voltou a ser só
comigo.
Chegando lá, a favela de Mukuro logo depois de chover
canivetes era um cenário pós-guerra. Como o chão vem da mãe natureza e é composto
de pedras e lama, parecia a finalíssima de Barretos de tão enlameado que
estava. Graças a deus não havia música sertaneja, ao contrário da nobre boiada.
Encontrar o caminho pelo colégio foi bastante tranquilo, seguido pelos olhares
impressionados do Señor de lós Anillos.
Finalmente marquei minhas aulas, que começam a partir
de amanhã. Social Studies (história)
pra duas turmas diferentes e English pra
turma seis, minha preferida até agora. Todo dia, menos sexta-feira que é o dia
do hospital. Encarar o colégio foi bem mais natural, o que não sei se é bom ou
ruim. Acostumar com tais condições nunca é bom.
Pra completar, Nancy (que quer ser advogada e eu mimo
o tempo todo por isso) estava com febre. Sem ter pra onde ir, John (o
coordenador) deu um ritmo alegando ser necessário para que ela sobrevivesse. Só
o uso da palavra survive já foi digno
de um tiro no coração. Apesar disso, consegui me manter mais frio que Arnold Schwarzenegger
no primeiro Batman (homem de gelo).
Na volta, a boa e velha tentativa de furto. Não pra
cima de mim, mas no europeu. Uma senhora de seus sessenta e poucos anos tentou botar
a mão no bolso dele três vezes dentro da Matatu de volta. Ela não apenas
colocava como insistia, enquanto ele segurava os pertences. Depois que deu um
tapa na mão da madame, ela esbravejou e começou a gritar em suaíle no ônibus.
Bem bacana.
No aniversário de dois meses, teve saudade, teve
miséria, teve violência, teve doideira no transporte e chuva à beça. No
aniversário de dois meses, teve aprendizado, teve evolução, teve vivência e emoção. Praticamente um resumo bem resumido da ópera. Vamos ver o que o aniversário de dois meses e um dia me aguarda. Afinal, todo dia é dia.
Diferente de Dar es Salaam, em que a possibilidade de
sair era nula, Nairóbi possui uma vida noturna bastante ativa. Tão ativa que os
locais costumam dizer que a cidade é noturna e só dá o ar da graça quando o sol
se põe. Meio contrariado por alguns dilemas internos, acabei saindo pra uma
festa dentro da casa de alguém que não sei o nome. E aí começou.
Primeiro, pensei na injustiça de me divertir em comparação
com o final de semana das crianças do colégio. Concordo que não vim fazer voto
de pobreza, mas um dos maiores desafios tem sido distinguir a realidade “rica”
da realidade miserável. Entender que estou fazendo o meu melhor pra melhorar
esse quadro, mas enquanto isso a vida não pode parar. É muito difícil.
Superado esse questionamento, embora tenha me lembrado
disso várias vezes no meio da noite, conheci bastante gente na festinha da
casa. Numa mistura cultural incrível, norueguesa, canadense, americana, finlandês,
brasileira e vários quenianos, claro. Até que deu samba. Seria ainda melhor se meia-noite
não tivéssemos sido expulsos pelos proprietários pela barulheira. A vizinhança
é chinesa. Tire suas próprias conclusões.
Dali pra várias boites em Westlands. Na maioria delas
(quase todas) não se paga a entrada. Mesmo assim, não queria ir não. Não sou fã
de noitada nem em hometown Rio de
Janeiro. Como todo mundo da minha casa foi, não me restou opção (muito caro
voltar pra residência sozinho e viva a zurice). No final das contas até me deu
vontade de ir pra ver como funcionava, de curiosa idade.
O nome da primeira casa de evento era Havana, mas não
tinha música cubana. Ao contrário, era conhecida não pela presença de latinos,
mas de vários Mzungus que habitam a região. De várias idades, de muitos amores
(salve Martinho). Se por um lado não era necessário esquentar tanto a cabeça
com violência, por outro a figura do “Mzungu Rico” é um atrativo desagradável.
Todo mundo pensa que o branco tem dinheiro e a meninada cai dentro sem dó nem
piedade. Não, obrigado.
A segunda casa se chamava Changes e nem cheguei a ir lá
porque a rapaziada da minha casa quis ir embora antes. O finlandês bêbado feito
um gambá e o holandês com a namorada que chegou pra viajar com ele pelo Quênia.
Mas que bela equipe. Reza a lenda que as boates de Nairóbi são bacaninhas, mas
a mulherada se esfrega que nem lagartixa por dois motivos: atração e furto.
Majoritariamente furto.
Relato de alguns alemães que foram várias vezes: as
meninas começam a rebolar em cima de você como se não houvesse amanhã enquanto
vão dando tapinhas nos bolsos pra o conteúdo ir saindo da calça. O conteúdo é o
celular e o dinheiro, seus pervertidos. Além dessa técnica, me contaram que
caso você se agarre a alguma cidadã, os outros aproveitam e tiram tudo do seu
bolso enquanto o trouxa pensa que é a menina desvendando locais.
Se ir pra noitada já não era muito da minha
laia, agora então que será complicadíssimo. Barzinho, sempre válido. Agora, comparecer
a um lugar em que a música não é boa, as pessoas são esquisitas e sempre tem um
malandro tentando se dar bem furtando seu celular ou sua carteira é brincadeira.
E sem beber muito, perder um pingo da consciência pode ser “fatal”.
Completei uma semana de Quênia ontem. Quantas
informações, frustrações e sentimentos em apenas sete dias. Acontece que a
semana inicial, seja na África ou em qualquer outro lugar, é de surtar. Da
mesma forma quando se assiste a um filme de terror esperando pelo susto e se
toma o susto de qualquer jeito, não adiantou nada me preparar pra primeira
semana. Foi brabo.
Começou pela recepção de sessenta dólares furtados na
fronteira junto com o esquecimento da galera da AIESEC de que eu estava
chegando. Depois não sabiam onde me acomodar e fui direcionado pra casa longe
do trabalho, apesar da existência de uma casa a poucos metros do labor. Sem
problemas, descobri que essa casa é bem melhor que a outra. Ahá.
Nesse começo, o desespero é evidente. Sem noção
nenhuma da cultura, dos hábitos e de como proceder pra tudo (até pra comer),
bate um nervosismo sem igual que, se não for controlado, gera insegurança,
insatisfação, medo e vários sentimentos bastante negativos. O primeiro contato
com o trabalho não foi dos melhores e, sozinho, foi o suficiente pra ativar o
surto interno.
Agora as coisas começam a se ajeitar. Não vou mais
sozinho pro colégio, recebi a companhia de um finlandês estranho à beça.
Maravilha, não preciso enfrentar os leões por conta própria. Ao som de don’t worry, be happy, vou trabalhando
em alguns projetos pessoais, dando voltas ao redor da casa pra me ambientar e a
tempestade vai aos poucos sumindo. Que alívio, tava f***.
Sete dias passaram a lá Chamado, com a diferença de que melhorou. Espero mais alegrias
daqui pra frente. Por outro lado, errar é humano, errar duas vezes é burrice.
Mais uma vez deixei os sentimentos ruins prevalecerem e perdi a oportunidade de
conhecer um alemão e uma canadense que foram embora ontem. Se pudesse fazer de
novo, teria me aborrecido menos com problemas que “se resolveram” e degustado
mais esse comecinho de Nairóbi.
Resta a mim curtir o final de semana. Hoje tem evento
AIESEC e dá pra conhecer uma galera boa. Bacana, uma vez que na minha casa só
tem um holandês e o esquisito do frio. O parceiro de Amsterdam vai embora na
segunda-feira e por duas semanas serei só eu e o nórdico. Essa casa precisa de
outras cores. Pra bom entendedor, meia paleta basta.
Tenho recebido algumas ameaças à barba,
principalmente por parte da família. Saibam todos que ao retornar, vou proteger
esses pelos nojentos na minha cara como se fosse um tesouro. Não aceito mais
copos d’água de vocês e até da comida vou ter que desconfiar. A batalha será
árdua, recomendo que vocês se preparem para o duelo. This. Is. África!
O último dia de safári superou os limites dos outros
dois dias juntos. Se é que era possível. A paisagem do acampamento em Ngorogoro
Crater foi eternizada na memória como o cenário mais bonito que vi na vida.
Tentei tirar algumas fotos, mas não consegui fotografar o giro de trezentos e
sessenta graus no meio de uma natureza alucinante.
Se no outro acampamento havia leões e hienas entre as
barracas, neste sítio o animal era outro. Antes mesmo de dormir, cerca de dez
horas da noite, era possível ver pela lanterna vários elefantes atravessando o
acampamento de dois mil e trezentos metros de altitude em busca de comida.
Imagina só: levantar a luz pra um local com ruídos e barulhos e ver paquidermes
caminhando lentamente, a dez metros de você. Palavrão a sua escolha.
O único problema foi que nessa noite me deu vontade
de urinar às três da manhã. Sem condições nenhumas de andar até o banheiro e
tremendo de frio, abri um pouquinho o zíper da barraca tentando ver qualquer
bicho ao redor. Quase chorando de medo, não consegui sair. O máximo que deu pra
fazer foi colocar o menino pra fora e rezar pra não tomar uma mordida na
criança.
A bateria da minha câmera havia acabado dos primeiros
dias e rezei pra ter onde carregar. Achei, que alegria! Seria ainda mais feliz
se eu não tivesse sido atacado por um besouro pré-histórico maior que a minha
cabeça enquanto segurava a câmera. Nesse instante, depois de passar a noite
inteira recuperando a carga, o objeto fotográfico deu um voo mais bonito que o
de vários pássaros do safári e estatelou no chão sem vida. Que sorte.
Depois do episódio memorável, parti rumo à cratera,
numa descida fenomenal. Ao contrário do Serengeti, onde os bichos estão cada um
no seu próprio habitat, dentro de Ngorogoro todos os animais dividiam o mesmo espaço.
Elefantes, rinocerontes, hienas, leões, búfalos, gnus, zebras, avestruzes, hipopótamos e
até uma lagoa com milhares de Flamingos aglomerados.
Acompanhe as palavras, depois fecha o olho e imagina.
Uma cratera lotada de natureza, de uma diversidade biológica absurda. Descida às
seis da manhã pegando o nascer do sol com o despertar de todas as criaturas. Dando
bom dia pras zebras. Pendurado no teto do carro, os olhos tentando registrar
cada virada de pescoço. Momento mágico.
Depois da aventura, o guia contou algumas histórias
de terror do acampamento, com elefantes surtando e pisoteando barracas. Bacana
que ele não fez isso antes, senão ia ser brabo de cair no sono. No dia mais
surreal de todos e sem câmera, fiquei só com as fotos do celular. Dá pra ter
uma noção e morrer de vontade de fazer isso. Por favor, uma vez na vida, façam
isso. Câmbio, desligo.
Inventei uma doença física pra faltar o trabalho
hoje. Claro que sempre que esse procedimento é adotado, a doença acaba
aparecendo depois como consequência. Passei o dia inteiro com dor de cabeça e
um frio danado. A desculpa não foi por preguiça ou à toa. Apesar de não possuir
qualquer patologia externa, estou corroído por dentro.
Na verdade, precisava de tempo era pra respirar.
Assimilar um pouco a situação e aprender a conviver com a rotina numa boa.
Permanecer no local de trabalho nesse pequeníssimo período de tempo de dois
dias sugou todas as minhas energias. Mesmo tentando ser o mais frio possível,
oposto do que acredito que costumo ser, o envolvimento foi tamanho que me
congelou.
Um dos milhares desafios é o sorriso. Chegar no meio
da turma e brincar como se viver daquele jeito fosse normal. Ver vários olhares
curiosos dispostos a aprender qualquer coisa, absorvendo o conteúdo como se fosse
esponja. Na hora da refeição, guerra civil. O máximo de comida ao mesmo tempo,
sem saber quando será a próxima oportunidade de se alimentar.
Pra piorar, uma ligeira insatisfação. A organização
faz um trabalho sensacional, mas alguns pontos negativos deram as caras. Em
primeiro lugar, certa rejeição à ajuda externa. Não acho que por xenofobia, mas
certa intolerância e receptividade zero. Imagino também que tenham recebido
muitos voluntários sem qualquer conhecimento e vontade de ajudar, o que
ocasionou um “fechamento” misturado com desconfiança pra quem chega.
Prova disso é o fato consumado duas vezes. Chegando
no colégio, nos dias de exame, não havia aula pra dar. A ordem foi: “vai
brincar com as crianças”. Me amarro nas crianças, mas não sou recreador. Vim
pra cá com a missão de ensinar algumas matérias, fundamentais pro
desenvolvimento de cada uma. Se fosse pra recrear criança, tenho duas irmãs lindas
dentro de casa (saudadassa).
Com certeza esse tipo de pensamento tem muito a ver
com a ideologia dos estrangeiros que chegam pra “ajudar”. Assim como aconteceu
em Bagamoyo, em que o tanzaniano me viu tirando foto e disse que eu iria voltar
pra Europa e vender, muitas pessoas acabam vindo pra cá na intenção de “fazer
um trabalho voluntário” mais pros outros do que pelo ato em si. O foco acaba
sendo a fotografia e não o acréscimo a cada jovem.
Ao invés de pensar no problema, foco na solução.
Vou pedir pra alguém da AIESEC colocar pelo menos uma companhia no mesmo
projeto. Dividir o cotidiano e a atenção das crianças já daria uma aliviada boa.
Com todos os apelidos carinhosamente conferidos por vocês, um novo surgiu
entre todas as séries do colégio: Jesus. Segura essa pressão. Esquilo pra aliviar.
O mal dos que não gostam de política é ser governados
por aqueles que gostam. Ontem tomou posse no Quênia o presidente Uhuru
Kenyatta, após eleição pra lá de polêmica. Hipoteticamente por uma
superioridade de um milhão de votos, a população local aceitou a eleição após o
julgamento do Supremo Tribunal ter declarado válido o processo que levou o
amigo ao cargo.
Controvérsia nas eleições, normal. Uhuru (liberdade,
em suaíle) Kenyatta é filho do primeiro chefe de Estado e presidente do Quênia,
Jomo Kenyatta. O papai do atual manda-chuva é considerado por muitos o fundador
da nação e governou de 1964 até 1978 por período maior do que o permitido pela
Constituição. Bom começo. Además,
filho de jacaré, jacarezinho é. Vide menino Bush, surpreendendo o mundo com
ignorância em níveis incontáveis.
Os noticiários internacionais mostraram há pouco
tempo cenas de violência e indignação dos quenianos quanto à eleição de menino
Uhuru. A situação não se justifica apenas pela suposta fraude na contagem dos
votos, incluindo cidadãos que faleceram e demais gasparzinhos, mas pelas
acusações sofridas pelo senhor mandatário.
Nada menos que o Tribunal Penal Internacional possui
sobre Vossa Excelência acusações de crimes contra a humanidade, pelo evento
protagonizado em 2007/08 que culminou com a morte de mil e trezentos quenianos.
Ninguém lembra porque o valor midiático de genocídios africanos é bem menor do
que a morte de qualquer mulher fruta ou ex-BBB.
Corredor do Childrock Institute
Pra melhorar, o processo no TPI vem sendo prejudicado
pelo sumiço misterioso de testemunhas e vítimas da violência eleitoral. Apesar
disso, o Quênia foi o primeiro país na história a eleger um cidadão sendo
processado pelo Tribunal Penal Internacional. Assistindo aos melhores momentos
do discurso, vi a promessa feita pelo digníssimo de um laptop pra cada jovem
estudante. Tá de sacanagem.
A independência do país chegou em 1963, alegando um
regime democrático pela Constituição feita no mesmo ano. Os populares se
orgulham da nação ter resolvido um problema político através de seus mecanismos
internos pela “primeira vez”, sem interferência britânica ou de qualquer outro
órgão internacional. No final das contas, será essa a noção de desenvolvimento?
O dia foi declarado feriado em função do
discurso presidencial. Soube hoje, no meu segundo dia de aula, que a maioria
das crianças ficou sem comer porque dependem dos alimentos providos pelo
colégio. Com isso, disseram que não gostaram do feriado porque foi preciso
mendigar por água e comida de casa em casa. Se deixar o emocional entrar em
campo, já era. Comentários?